Cem Anos de Solidão, além de um excelente romance, trata-se uma profunda
reflexão sobre os fundamentos que compõem o ideário colombiano, sem, todavia, esquecer
os fios que os une a América como um todo, e em particular, a América Espanhola. O
desenrolar da obra perpassa por acontecimentos marcantes da história da Colômbia entre
meados séculos XIX e início do século XX. Aos moldes do Realismo Fantástico, estilo
literário que consagrou García Márquez mundialmente, Cem Anos de Solidão esconde um
tratado rico em significações.
Entretanto sua linguagem repleta de metáforas e alegorias dificulta uma análise
ipso facto
de interpretações realizadas, que, por muitas vezes, se mostram contraditórias ou mesmo
incoerentes. Friso que este estudo trata-se de uma análise pessoal de Cem Anos de Solidão,
embasadas em alguns estudos importantes sobre a problemática da constituição dos
estados nacionais latino-americanos. Neste intento me atenho aos eventos que considero
mais pertinentes e fecundos no que tange a perspectiva histórica.
das discussões presentes nesta intrincada trama, o que se prova pela infinidade
Ano III, Nº10, Juiz de Fora, abril - julho/2009
Desenvolvimento
O enredo de Cem Anos de Solidão tem como pano de fundo aldeia fictícia de
Macondo e conta a saga da família Buendía em um ínterim de cem anos. O escritor situa
os ocorridos no pequeno povoado ante os principais acontecimentos históricos do período,
estabelecendo uma perfeita conexão entre micro e macro, mesclando, simultaneamente,
elementos reais e fantásticos. Percebemos também na trama uma intrínseca relação entre
percepção individual e memória coletiva, visto que os eventos vêm sendo contados
conforme a percepção dos personagens. Em seus primeiros capítulos, a obra “Cem Anos de Solidão”, conta às visitas anuais
de um grupo de ciganos esfarrapados a Macondo. Estes longínquos viajantes são, a
princípio, a única forma de contato entre Macondo e a civilização.
Os ciganos traziam ao povoado bugigangas que chamavam de as “grandes
maravilhas do mundo”. Em suas idas e vindas, Melquíades, cigano amigo de José Arcadio
Buendía, trouxe mapas de navegação portugueses, um astrolábio, uma bússola, um
sextante, além de lhe dar uma cópia manuscrita dos estudos do monge Hermann. O
patriarca dos Buendía, utilizando-se dos instrumentos adquiridos, descobre que a terra é
redonda, em uma clara sátira a Colombo. Após ser taxado por louco pelos moradores de
Macondo, José Arcadio Buendía se empenhou em encontrar o segredo da pedra filosofal,
promover a duplicação do ouro e ler sobre os sete metais que compõem os diferentes
planetas. Estudos estes realizados no laboratório de alquimia que ganhou de Melquíades. A parábola dos ciganos viajantes, como vemos, está repleta de simbolismos. Os
objetos trazidos pelos ciganos não permitem que os habitantes de Macondo se olvidem dos
laços que os unem a civilização. As inquietações de José Arcádio Buendía promovem uma
nítida reminiscência à mentalidade dos primeiros colonizadores. Percebemos uma confusa
mescla entre elementos próprios da mentalidade medieval associado a novas formas de
pensar emergentes no período da conquista do Novo Mundo. O patriarca dos Buendía é a
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incorporação desta mentalidade dúbia. Em seu mundo coexiste uma atitude racionalista e
uma concepção fantástica de mundo, onde inovações científicas se misturam a tapetes
voadores, monstros metade homem metade animal e alma penada.
engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que
era possível servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra
José Arcadio Buendía, cuja destacada imaginação ia sempre mais longe que o1.
O episódio da fundação de Macondo tem sua origem em um acontecimento
inusitado. José Arcadio Buendía se casou com sua prima Úrsula. Havia uma crença
popular que dizia que de uma relação entre primos nasceriam crianças com rabos de
porco. Com medo Úrsula tratou de se prevenir para que seu marido não a violasse usando
roupas de baixo com um eficiente sistema de amaras para conter as investidas do marido.
Certo dia José Arcadio Buendía estava em uma rinha de galos quando Prudêncio Aguilar
disse que após dois anos de casamento Úrsula ainda era virgem e que José Arcadio
Buendía era impotente. Ofendido José Arcadio Buendía matou Prudencio Aguilar. Desde
então seu fantasma passou a perturbar os Buendía de tal modo que José Arcadio Buendía
resolveu fugir com sua esposa da aldeia. Ele chamou um grupo de amigos que aceitaram
participar da travessia da serra pantanosa rumo ao mar.
Foram eles os primeiros mortais que viram a vertente ocidental da serra. Do
cume nublado contemplaram a imensa planície aquática do grande pântano,
espraiada até o outro lado do mundo. Certa noite, depois de andarem vários
meses perdidos entre os charcos, já longe dos últimos índios que haviam
encontrado no caminho, acamparam às margens de um rio pedregoso cujas
águas pareciam uma torrente de vidro gelado
2.
Na passagem acima o escritor nos fala sobre a travessia por um grande local
desabitado, sem quaisquer resquícios de ações antrópicas. É neste cenário, onde a
civilização ainda não havia ousado tocar os pés, que José Arcadio Buendía funda a aldeia
de Macondo, povoado que se origina isolado da civilização, longe de qualquer influência
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8 p.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. 27ª ed, Rio de Janeiro, editora record. 1967.
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27 p.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. 27ª ed, Rio de Janeiro, editora record. 1967.www.estudosibericos.com 54
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